domingo, 5 de maio de 2013

A Tragédia Observada de Perto


 Algumas coisas mudam a vida da gente. Nada será como antes. Participar da cobertura da tragédia da boate Kiss, em Santa Maria (RS), me fez ver que sempre se pode ajudar o próximo. Enquanto autoridades, policiais e donos da casa noturna estavam preocupados em minimizar o impacto das 236 mortes perante a opinião pública, conheci a solidariedade na essência da palavra. Talvez nunca mais presencie tamanho desapego. Só assim, pude suportar o ar pesado que encontrei na cidade de 260 mil habitantes, 30 mil deles envolvidos no meio universitário. Não imaginava ver pessoas com vergonha de esboçar alegria, enquanto centenas tinham perdido o que mais tinham de valor na vida.
Eu e o fotógrafo Daniel Queiroz, do Notícias do Dia, e o repórter Tony Borges e o cinegrafista Diego Tonnera, da RICTV, partimos no domingo, dia 27 de janeiro, para uma jornada de oito horas, sem saber o que encontraríamos pela frente. Naquele momento, sabíamos que 236 pessoas tinham morrido, mas os motivos do incêndio eram desconhecidos.
Logo na chegada, nos deparamos com centenas de pessoas em um cemitério. Nossa primeira parada ocorreu no Hospital de Caridade, onde estava a maior parte dos feridos. Tínhamos que conversar com um sobrevivente que ajudou a retirar inúmeros amigos do interior da danceteria. Sem autorização para entrar no setor de emergência, conversei com Bruno por telefone. No outro lado da linha, percebi alguém debilitado. Cada palavra que ele pronunciava, seguia-se de uma longa respiração. Bruno foi vítima de uma arma mortal, a fumaça tóxica expelida das espumas de proteção acústica da casa noturna.
Na capela mortuária, foi possível entrar em sintonia com o drama dos moradores da cidade. Eram cinco salas, cada uma com uma família aos prantos, sem saber como seria o próximo dia. Foi apenas a primeira cena de choro coletivo que veríamos na cidade.

Contato com a família
Duas horas. Esse foi o tempo de descanso entre domingo e a segunda-feira. No segundo dia foi possível ver o tamanho da repercussão do incêndio. Equipes de TVs, rádios e jornais do país inteiro estavam em Santa Maria.
Mais de 24 horas após o incêndio, o cheiro de queimado era fortíssimo na Rua dos Andradas, 1.925. Atrás da fita de isolamento, muitos ainda se perguntavam o que havia ocorrido. Na praça central, a Saldanha Marinho, o assunto era monotemático. Todos estavam chocados e comovidos com o drama. O fato dos mortos terem entre 18 e 24 anos, era lamentado em cada canto.

Comoção de 35 mil pessoas em passeata
Duas manifestações de familiares e moradores emocionaram até quem estava ali a trabalho. Não houve como ficar imóvel diante de tamanha comoção. Mais de duas mil pessoas lotaram a praça Saldanha Marinho para participar de um culto ecumênico em homenagem às vítimas. Os trajes eram roupas brancas, simbolizando a paz, ou pretas, estampando o luto. As imagens desse protesto marcaram, mas logo perderam um pouco da importância.
Na segunda manifestação, não restava dúvidas que essas pessoas conseguiriam pedir justiça para o mundo todo. Embalados por um “Pai Nosso”, 35 mil pessoas que seguiam para a frente da boate Kiss me arrastaram. Ali havia se formado um memorial em homenagem aos mortos.
Pela manhã, lembro que havia apenas dois vasos. À noite, o número disparou. Durante a caminhada, dezenas de pessoas ligadas às vítimas depositaram objetos, fotos e flores no local. A cada item deixado no memorial, uma cerimônia que poderia ser em silêncio ou com gritos dependendo do estado emocional de cada uma.
Uma cena em comum marcou tanto a mim quanto ao Daniel Queiroz. Quando seguíamos para o hotel para enviar fotos e textos, uma jovem era amparada. Ela chorava e gritava: “Quero meu amor”. O choro foi abafado por milhares de palmas para confortar a jovem.





Misto de alegria, dor e esperança
Nosso retorno para Florianópolis estava previsto para a manhã de terça-feira, mas resolvemos ficar. A dupla da televisão preferiu seguir viagem. A maioria queria partir e esquecer as cenas de filme de terror.
Antes de partir, Toni Borges foi pela última vez ao local da tragédia. Naquele dia, a polícia permitiu o acesso de jornalistas até a porta da Kiss. Enquanto narrava a história, ele contou, já em Florianópolis, que chorou pela primeira vez. Não havia como passar imune a tanta dor.
Na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria), todos estavam consternados com a perda de 101 estudantes. Muitos moravam na Casa do Estudante. Encontramos histórias tristes, funcionários e professores sem saber como retomar as aulas, suspensas até segunda-feira. Não há clima, mesmo que os trabalhos e provas tenham que ser adiados também.

Lágrimas ficaram em Santa Maria
O último dia em Santa Maria foi mais ameno. Reservamos o tempo para arrumar malas, reunir equipamentos e acertar horário da viagem. Ainda assim, havia muito a ser feito. Durante a madrugada, 15 pessoas foram hospitalizadas com suspeitas de intoxicação pela fumaça. A previsão é que os casos poderiam ocorrer até 72 horas após o acidente.
Por volta das 11h45, estávamos prontos para deixar a cidade. Eu com uma dor na garganta que persistiu desde o segundo dia. Acreditei que era de tanto segurar o choro. Em Florianópolis o médico amenizou e disse que era devido ao ar-condicionado do hotel.
Parecia que estávamos chegando e não partindo, dias depois do incidente. A expressão das pessoas ainda reflete a tristeza. Os olhares continuam focados no vazio. O ar permanecia pesado. Quando saímos da cidade, deixei escorrer as únicas lágrimas da cobertura. Ali podia. Naquele momento não estava mais o jornalista, mas sim um ser humano que acompanhou de perto a maior tragédia do Rio Grande do Sul, estado natal que deixei há 16 anos.

                      Éverton Palaoro (repórter do jornal Notícias do Dia), relatou o que viu e ouviu durante a cobertura da semana em Santa Maria- RS)
                                                                        

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