Algumas coisas mudam a vida da gente. Nada
será como antes. Participar da cobertura da tragédia da boate Kiss, em Santa
Maria (RS), me fez ver que sempre se pode ajudar o próximo. Enquanto
autoridades, policiais e donos da casa noturna estavam preocupados em minimizar
o impacto das 236 mortes perante a opinião pública, conheci a solidariedade na
essência da palavra. Talvez nunca mais presencie tamanho desapego. Só assim,
pude suportar o ar pesado que encontrei na cidade de 260 mil habitantes, 30 mil
deles envolvidos no meio universitário. Não imaginava ver pessoas com vergonha
de esboçar alegria, enquanto centenas tinham perdido o que mais tinham de valor
na vida.
Eu e o fotógrafo Daniel Queiroz, do Notícias do Dia,
e o repórter Tony Borges e o cinegrafista Diego Tonnera, da RICTV, partimos no
domingo, dia 27 de janeiro, para uma jornada de oito horas, sem saber o que
encontraríamos pela frente. Naquele momento, sabíamos que 236 pessoas tinham
morrido, mas os motivos do incêndio eram desconhecidos.
Logo na chegada, nos deparamos com centenas de
pessoas em um cemitério. Nossa primeira parada ocorreu no Hospital de Caridade,
onde estava a maior parte dos feridos. Tínhamos que conversar com um
sobrevivente que ajudou a retirar inúmeros amigos do interior da danceteria.
Sem autorização para entrar no setor de emergência, conversei com Bruno por
telefone. No outro lado da linha, percebi alguém debilitado. Cada palavra que
ele pronunciava, seguia-se de uma longa respiração. Bruno foi vítima de uma
arma mortal, a fumaça tóxica expelida das espumas de proteção acústica da casa
noturna.
Na capela mortuária, foi possível entrar em
sintonia com o drama dos moradores da cidade. Eram cinco salas, cada uma com
uma família aos prantos, sem saber como seria o próximo dia. Foi apenas a
primeira cena de choro coletivo que veríamos na cidade.
Contato com a família
Duas horas. Esse foi o tempo de descanso entre
domingo e a segunda-feira. No segundo dia foi possível ver o tamanho da
repercussão do incêndio. Equipes de TVs, rádios e jornais do país inteiro
estavam em Santa Maria.
Mais de 24 horas após o incêndio, o cheiro de
queimado era fortíssimo na Rua dos Andradas, 1.925. Atrás da fita de
isolamento, muitos ainda se perguntavam o que havia ocorrido. Na praça central,
a Saldanha Marinho, o assunto era monotemático. Todos estavam chocados e
comovidos com o drama. O fato dos mortos terem entre 18 e 24 anos, era
lamentado em cada canto.
Comoção de 35 mil pessoas em passeata
Duas manifestações de familiares e moradores
emocionaram até quem estava ali a trabalho. Não houve como ficar imóvel diante
de tamanha comoção. Mais de duas mil pessoas lotaram a praça Saldanha Marinho
para participar de um culto ecumênico em homenagem às vítimas. Os trajes eram
roupas brancas, simbolizando a paz, ou pretas, estampando o luto. As imagens
desse protesto marcaram, mas logo perderam um pouco da importância.
Na segunda manifestação, não restava dúvidas que
essas pessoas conseguiriam pedir justiça para o mundo todo. Embalados por um
“Pai Nosso”, 35 mil pessoas que seguiam para a frente da boate Kiss me
arrastaram. Ali havia se formado um memorial em homenagem aos mortos.
Pela manhã, lembro que havia apenas dois vasos. À
noite, o número disparou. Durante a caminhada, dezenas de pessoas ligadas às
vítimas depositaram objetos, fotos e flores no local. A cada item deixado no
memorial, uma cerimônia que poderia ser em silêncio ou com gritos dependendo do
estado emocional de cada uma.
Uma cena em comum marcou tanto a mim quanto ao
Daniel Queiroz. Quando seguíamos para o hotel para enviar fotos e textos, uma
jovem era amparada. Ela chorava e gritava: “Quero meu amor”. O choro foi
abafado por milhares de palmas para confortar a jovem.
Misto de alegria, dor e esperança
Nosso retorno para Florianópolis estava previsto
para a manhã de terça-feira, mas resolvemos ficar. A dupla da televisão
preferiu seguir viagem. A maioria queria partir e esquecer as cenas de filme de
terror.
Antes de partir, Toni Borges foi pela última vez ao local da tragédia. Naquele dia, a polícia permitiu o acesso de jornalistas até a porta da Kiss. Enquanto narrava a história, ele contou, já em Florianópolis, que chorou pela primeira vez. Não havia como passar imune a tanta dor.
Antes de partir, Toni Borges foi pela última vez ao local da tragédia. Naquele dia, a polícia permitiu o acesso de jornalistas até a porta da Kiss. Enquanto narrava a história, ele contou, já em Florianópolis, que chorou pela primeira vez. Não havia como passar imune a tanta dor.
Na UFSM (Universidade Federal de Santa Maria),
todos estavam consternados com a perda de 101 estudantes. Muitos moravam na
Casa do Estudante. Encontramos histórias tristes, funcionários e professores
sem saber como retomar as aulas, suspensas até segunda-feira. Não há clima,
mesmo que os trabalhos e provas tenham que ser adiados também.
Lágrimas
ficaram em Santa Maria
O último dia em Santa Maria foi mais ameno.
Reservamos o tempo para arrumar malas, reunir equipamentos e acertar horário da
viagem. Ainda assim, havia muito a ser feito. Durante a madrugada, 15 pessoas
foram hospitalizadas com suspeitas de intoxicação pela fumaça. A previsão é que
os casos poderiam ocorrer até 72 horas após o acidente.
Por volta das 11h45, estávamos prontos para deixar
a cidade. Eu com uma dor na garganta que persistiu desde o segundo dia.
Acreditei que era de tanto segurar o choro. Em Florianópolis o médico amenizou
e disse que era devido ao ar-condicionado do hotel.
Parecia que estávamos chegando e não partindo, dias
depois do incidente. A expressão das pessoas ainda reflete a tristeza. Os
olhares continuam focados no vazio. O ar permanecia pesado. Quando saímos da
cidade, deixei escorrer as únicas lágrimas da cobertura. Ali podia. Naquele
momento não estava mais o jornalista, mas sim um ser humano que acompanhou de
perto a maior tragédia do Rio Grande do Sul, estado natal que deixei há 16 anos.
Éverton Palaoro (repórter do jornal Notícias do Dia), relatou o que viu e ouviu durante a cobertura da semana em Santa Maria- RS)
Éverton Palaoro (repórter do jornal Notícias do Dia), relatou o que viu e ouviu durante a cobertura da semana em Santa Maria- RS)
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