"Eu hoje tenho 20 anos e quero me divertir. Meu pais estão dormindo em casa e amanhã haveria um churrasco. Eu tenho a vida pela frente e quero mudar o mundo. Mas também quero namorar, dançar, rir, andar a esmo com amigos nas lombas íngremes da minha cidade. Eu sou feito da bafagem úmida da Serra Geral, dos morros que circundam a Boca do Monte, do eco metálico dos trilhos de outrora, da lembrança ancestral da Gare onde meus avós trabalhavam. Ainda que eu não tenha nascido aqui, eu tenho o viço púbere do futuro. Eu posso ter vindo das barrancas de Uruguaiana, das campinas de São Borja, das grotas de Santiago do Boqueirão, das videiras de Jaguari, de São Pedro do Sul, São Sepé, São Gabriel, Dom Pedrito, de cima da serra, não importa. Santa Maria sou eu, cidade cadinho, generosa e aldeã, que nos pariu a todos em seu útero colossal.
Eu sinto o afago do vento norte, eu vejo anciãs tomando mate na janela e cadeiras nas calçadas da Vila Belga em uma tarde quente de janeiro. Eu tenho o lastro interiorano de minha cidade, mas também as narinas abertas, os ouvidos atentos, os sentidos despertos para o que enxergo na face jovem de uma urbe sempre aberta ao novo, cosmopolita e inquieta, convidando-me para a festa da vida. Por isso celebro, brindo, bailo. Tenho o frescor do campus em meus modos, a avidez universitária do saber. Recebo, faceiro e agradecido, convite do conhecimento, as portas do desconhecido a me cortejar. Como eu não quereria viver? Então entro numa boate e não tenho mais voz, não tenho mais planos, não tenho saída.
Rogo a todos os que andaram sobre os paralelepípedos da Rio Branco para me salvar. Quero correr e suplicar socorro a quem me possa acudir. A bênção, Carlos Scliar. A bênção, Raul Bopp. A bênção, velho Cezimbra Jacques, meu Prado Veppo, a bênção Felippe d’Oliveira. Iberê Camargo, tu que estudaste no Liceu de Artes e Ofícios, ali bem perto de onde a primeira faísca espocou, a bênção. A bênção, todos os artistas e poetas da Boca do Monte. Precisamos de vocês para explicar o sentido do inexplicável. Vocês, que tiveram tempo para luzir, expliquem-nos: por que temos de findar?
Como posso adormecer, se mal despertei para o mundo? Como posso abdicar, se não brinquei o suficiente, não amei o bastante, deixei incompleto o edifício da minha história? Eu não choro só por mim, e nem meu pranto cai sozinho. Minha cidade é hoje o Brasil em luto. Minha juventude perdida é o meu país, perplexo e tonto, impotente a velar meu corpo. Santa Maria, rogai por nós."
Marcelo Canellas (repórter especial da Rede Globo)
Eu sinto o afago do vento norte, eu vejo anciãs tomando mate na janela e cadeiras nas calçadas da Vila Belga em uma tarde quente de janeiro. Eu tenho o lastro interiorano de minha cidade, mas também as narinas abertas, os ouvidos atentos, os sentidos despertos para o que enxergo na face jovem de uma urbe sempre aberta ao novo, cosmopolita e inquieta, convidando-me para a festa da vida. Por isso celebro, brindo, bailo. Tenho o frescor do campus em meus modos, a avidez universitária do saber. Recebo, faceiro e agradecido, convite do conhecimento, as portas do desconhecido a me cortejar. Como eu não quereria viver? Então entro numa boate e não tenho mais voz, não tenho mais planos, não tenho saída.
Como posso adormecer, se mal despertei para o mundo? Como posso abdicar, se não brinquei o suficiente, não amei o bastante, deixei incompleto o edifício da minha história? Eu não choro só por mim, e nem meu pranto cai sozinho. Minha cidade é hoje o Brasil em luto. Minha juventude perdida é o meu país, perplexo e tonto, impotente a velar meu corpo. Santa Maria, rogai por nós."
Marcelo Canellas (repórter especial da Rede Globo)
CARPINEJAR escreve às famílias e amigos das vítimas de Santa Maria…
NÃO DESISTAM DE VIVER
A vontade é de abandonar o trabalho, não acordar mais, definhar abraçado ao travesseiro, encolher-se no canto e não erguer nem mais o braço para atender a porta e pedir ajuda. Nada tem mais sentido, e ordem.
A vontade é de não ter mais vontade.
Os filhos morreram, os irmãos morreram, os colegas morreram. Eu entendo.
Entendo que vocês levantarão, sobressaltados, às duas horas de todas as madrugadas de suas existências, que haverá sempre uma sirene abrindo as ruas do sangue, que será insuportável raciocinar diante de um alarme dos bombeiros ou de ambulância lá fora.
Entendo que a casa está vazia, como a cidade está vazia, como o corpo está vazio. Mas não podemos chorar a morte dos familiares se não valorizarmos nossa vida. Entendo que não será mais a vida idealizada, não será mais a vida planejada, não será mais a vida que merecíamos.
Mas ainda que seja uma vida desesperada, uma vida atormentada, uma vida traumatizada, ainda é a nossa vida. Ainda é a vida que ficou. Ainda a vida que temos que cuidar. Ainda é a vida que temos que salvar. Afinal, nossa vida era tudo o que a gente pretendia assegurar para eles que se foram na boate Kiss.
Gostaríamos que os duzentos e trinta e sete jovens estivessem com a gente, então não podemos nos jogar fora.
Não podemos esnobar a chance de estar aqui. Continuar a viver é preservá-los. Continuar a viver é sabedoria. Continuar a viver é fé. Continuar a viver é humildade.
Continuar a viver é respeito: é não ser mais vítima do que as vítimas, por mais que doa doer o dia inteiro.
É imperioso cortar o cordão umbilical da Rua dos Andradas, abolir as hipóteses: se eu tivesse proibido meu filho de sair, se eu tivesse viajado com a família, se eu tivesse telefonado antes, se eu tivesse sido mais rigoroso…
O “se” não devolve o que perdemos, nem diminui o sofrimento. A culpa não deve abafar a justiça, o medo não deve sufocar a esperança. Não há como controlar o destino.
A tragédia não aconteceu porque vocês falharam. Vocês, familiares, não teriam como evitá-la.
O que sobra é amar a si para explicar o que é amor, para explicar o que é saudade. O que nos resta é a responsabilidade de lembrá-los com garra. De lavar as escadarias das igrejas com flores. De ir adiante para que esse incêndio criminoso nunca mais se repita em nenhum lugar do mundo deste Brasil.
Que nossos filhos de Santa Maria jamais morram para a História.
* Fabrício Carpinejar é jornalista, professor, poeta e escritor
* Publicado originalmente no jornal ZERO HORA (RS) em 5 fev 2013